A 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) deu prazo de um ano para o Estado paulista se adequar para ações que dificultem agressões e humilhações aos presos em penitenciárias e centros de detenção provisória de São Paulo, o que inclui encarcerados do Primeiro Comando da Capital (PCC), sob pena de multa diária de R$ 25 mil.
De acordo com documentos do Ministério Público, acessados pelo Estadão, há relatos de mulheres presas obrigadas a mostrar os seios ao agentes públicos, cachorros sendo usados para morder detentos, socos, pontapés e denúncia de um preso ter sido obrigado a comer fezes. No CDP da Praia Grande, litoral do Estado, o MP relatou a morte de um detento depois de uma suposta agressão feita por integrantes do Grupo de Intervenção Rápida (GIR). Procurada, a Procuradoria Geral de Estado informou que "o caso está sob análise". Nos autos, alegou falta de provas diante das acusações (leia mais abaixo). Até o fim do ano que vem, caso não ocorram recursos, o Estado terá de equipar os agentes com câmeras corporais e utilizar os cães apenas para revistar celas em busca de drogas.
A ação corre na Justiça paulista desde janeiro de 2019. Na última terça-feira, 3, o TJ rejeitou embargos de declaração apresentados pela Defensoria, que pretendia fazer com que agentes públicos não usassem, por exemplo, gás de pimenta durante as ações. Na segunda-feira, 2, começou a contar o prazo para apresentação de recursos.
Em acórdão do dia 4 de novembro último, o desembargador José Eduardo Marcondes Machado apontou na relatoria que ação tem provas suficientes dos exageros dos servidores públicos. "Os documentos juntados durante a tramitação do processo, muitos dos quais instruídos não só com os relatos uníssonos de dezenas de presos e seus familiares, mas também com acervo fotográfico de ferimentos em múltiplos sentenciados, individualmente abordados na sentença, não deixam sombra de dúvidas de que a atuação do GIR, criado para, entre outras finalidades, evitar a ocorrência de um novo massacre por forças militares, como o do Carandiru/1992, tem sedado com excessos e abusos, em violação aos direitos fundamentais irrenunciáveis, inalienáveis, universais e indivisíveis", diz trecho do acórdão.
O Ministério Público, por meio dos promotores Eduardo Ferreira Valerio e Bruno Orsini Simonetti, afirmaram na inicial apresentada em dezembro de 2018 que presas da Penitenciária Feminina de Santana, na capital paulista, foram agredidas por realizarem uma festa de aniversário do PCC. O caso ocorreu em 31 de agosto de 2015, informaram os promotores.
As agressões foram vistas como represália pelo fato de as custodiadas comemorarem a data da facção criminosa. "Segundo as presas entrevistadas, agentes do GIR agrediram detentas com cassetetes, socos e pontapés. Além disso, foram proferidas inúmeras ofensas verbais e cães eram utilizados, durante a operação, para amedrontar e ameaçar as presas", diz trecho da inicial. O documento aponta que as presas foram obrigadas a mostrar os seios e as que negaram foram agredidas.
A intervenção do GIR começou por volta das 7h e acabou às 15h. Foram, segundo documentos acostados nos autos, 150 homens que participaram da ação. No inquérito do MP, há ainda citação de que as presas foram puxadas pelos cabelos e ameaçadas de morte.
Entre 2015 e 2016, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo realizou inspeções em 29 unidades prisionais, sendo 21 de detenção provisória, cinco penitenciárias masculinas e três femininas. "...os quais concluíram que em todas as unidades existe a prática reiterada de tortura e que o GIR, através da conduta ilícita de seus agentes, é indutor dessa prática em pelo menos 21 unidades prisionais", relatou o MP.
De acordo com o MP, os Centros de Detenção Provisória de Campinas, Mogi das Cruzes, Itapina I, Bauru, Americana, Vila Independência (Capital), Penitenciária Feminina da Capital, Penitenciária Feminina de Santana (Capital) e a Penitenciária de Tupi Paulista contaram com depoimentos no sentido de que os agentes do GIR já agrediram, humilharam, destruíram pertences, usaram spray de pimenta e balas de borracha durante intervenções.
No litoral, detento é obrigado a comer fezes e um morre, diz MP
Já no Centro de Detenção Provisória de São Vicente, quatro detentos informaram em entrevista reservada que as intervenções do GIR ocorriam de maneira agressiva, sendo que uma pessoa fora forçada a comer fezes. "Nesse mesmo CDP, foi relatado que são usados sprays de pimenta; que os sabonetes dos presos são picotados", diz o documento público.
O MP classificou como "situação ainda mais preocupante" o relato de morte no CDP da Praia Grande. "Os presos disseram que o GIR faz incursões mensalmente. Essas incursões são feitas com o emprego de cachorros, balas de borracha, bombas de efeito moral e spray de pimenta. Além disso, os agentes do GIR rasgam roupas e cartas dos presos. Nesse CDP, existe notícia de que dois presos foram mordidos por cachorros e de um óbito em decorrência de espancamentos", afirmou o MP. O caso não tem mais detalhes nos autos.
São Paulo teve "cela do castigo", segundo promotoria
O CDP de Vila Independência, na capital, teve uma cela chamada de "cela do castigo", local em que detidos eram levados depois de algum ato de indisciplina. Em documento juntado pelo MP, há citação de que presos no regime ficavam, por exemplo, quatro dias sem creme dental ou sabonete.
A cela também não apresentava boa limpeza. Em um relatório de 2013, há citação de que o CDP contava com 2.492 presos provisórios. A situação, de acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), melhorou. Hoje, são 1.250 homens que aguardam julgamento.
No total, em todo Estado, são 204.385 presos (número atualizado na terça-feira, 3) espalhados em 182 unidades prisionais. De acordo com dados da SAP, 165 são para homens e 19 para mulheres.
Preso perde liberdade, não dignidade, avalia presidente de comissão da OAB-SP
Consultado pelo Estadão, o presidente da Comissão Especial de Advocacia Criminal da OAB/SP, José Carlos Abissamra Filho, afirmou que o tema sobre agressões em presídios paulistas é frequente e a situação mostra ineficiência do sistema jurídico penal. Abissamra Filho lembra que, hoje, o sistema prisional brasileiro opera com três vezes a sua capacidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu, em diversas decisões, o problema da superlotação dos presídios.
"Esse tipo de ação adotada pelo Estado (intervenções e agressões), no que diz respeito às unidades prisionais, além de ilegal, além de desumano, quer dizer, eu estou indo além do ilegal e do desumano para dizer que é ineficaz, porque o direito ao preso está reconhecido na LEP (Lei de Execuções Penais), está reconhecido na Constituição Federal e o nosso sistema é claríssimo ao estabelecer que o preso, ele só perde o direito à liberdade, ele não perde o direito à dignidade", avaliou o especialista, que também é doutor em direito penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
GIR de São Paulo é referência nacional, apontou PGE
No recurso apresentado à Justiça depois da sentença parcialmente procedente, em 2022, a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP) afirmou que o GIR de São Paulo é referência nacional para atuação em presídios. "Tanto que seus membros são convidados para ministrar cursos e trocar experiências com outras forças de segurança, sendo exemplo para as mais diversas unidades prisionais de todo o país, já que sua atuação se pauta pelo uso escalonado da força, de maneira estritamente não letal, com técnicas próprias e equipamentos específicos", apontou a procuradoria.
A procuradoria declarou ainda que o tema discutido nos autos é sério e que eventuais abusos "devem ser coibidos, existindo mecanismos institucionais para tanto". A PGE citou ainda que não há provas nos autos das acusações que partiram do MP e da DP. "Todavia, a premissa da qual partem Ministério Público e Defensoria Pública não foi comprovada. O acervo probatório dos autos não autoriza o reconhecimento judicial de que o GIR cometeria violações sistemáticas aos direitos humanos, como alegam os autores".
De acordo com a procuradoria, os integrantes do GIR são agentes de segurança penitenciária ou agentes de escolta e vigilância penitenciária admitidos após análise detalhada e específica de cada aptidão, vocação, conduta ilibada e ausência de falta funcional. Para participar do aludido Grupo, a Administração Pública exige capacitação por meio de testes e treinamentos rigorosos aplicados pela Escola da Administração Penitenciária, em parceria com a Polícia Militar e outros órgãos e entidades da seara de segurança. Os agentes selecionados passam por período experimental de seis meses, em que são permanentemente avaliado.
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